Passavam
33 minutos das doze badaladas quando ela entra no carro. Está escuro e não está
ninguém na rua. O tempo ficou um pouco mais fresco, mas não se fazia sentir
frio. Destrancou o carro, sentou-se suavemente no banco enquanto ajeitava a
saia e prendeu o cinto. Ligou o motor, meteu a primeira mudança, acendeu os
faróis e destravou o carro. Mesmo antes de seguir para casa, tinha decidido que
não ia pelo meio dos montes, não só por ter um pouco do receio de o que quer
que se atravessasse a meio da estrada, mas também porque parecia ser um
caminho, naquele momento, mais longo (embora seja aquele que sempre toma) e
que, por isso, iria fazer com que estivesse mais tempo sozinha. E mais tempo
sozinha era sinónimo de pensar mais – ela não queria isso. Não naquele dia.
Naquele
dia ela tinha-se apercebido que queria muito mais, que precisava de muito mais.
Olhava com ternura mas ao mesmo tempo um nó no coração para pessoas que tinham
entre si entrelaçados muito mais do que dedos, e via o quanto precisava de ter
um «algo» assim. Podia até nem combinar com ela, mas desde pequena que se tinha
habituado a histórias de encantar embora nunca tenha feito parte de nenhuma;
sempre se viu como uma romântica de alma e coração, apesar de poucas vezes este
lhe tenha sido realmente roubado. Eram só pequenos pedacinhos que lhe iam
levando, de quando a quando, e que depois, com algum custo, ela reconstruía.
Quando ele era levado por inteiro, via-se com as artérias na sua mão a gritarem
Socorro! e a suplicarem que corresse
atrás do ladrão desafortunado – que pensava ali levar um grande tesouro, quando
levava um espécime de órgão propulsor tão comum como qualquer outro, tão sem
valor como o de outra qualquer rapariga que ama sempre sem dó nem piedade, e
depois se esquece de se amar a si própria. Correu atrás uma vez, durante meses
e meses, sem pistas ou mapas, sempre com o sorriso estampado no rosto e a
esperança no peito: mas apareceu-lhe um buraco pelo caminho e ela caiu no
abismo. E o jogo de juntar os pedacinhos recomeçou, quando esbarrou de cara no
chão frio e solitário do fim da viagem.
Naquele
dia, a rapariga compreendeu que existia muito mais para além do que tinha
vivenciado até ali. E ela queria-o, mais do que tudo. Eram aqueles a que
chamava amores incondicionais, de
sempre e para sempre, com tudo e com nada.
Pára
o carro em frente ao portão de casa, deixa-o em ponto morto e pega no comando.
Carrega no botão com a mesma suavidade de sempre, e deixa-se levar um pouco
mais pelos pensamentos. Malditos. Não a deixam em paz. Porque é que temos estas
necessidades básicas? Porque é que não podemos apenas sobreviver? Mete outra
vez a primeira e entra em casa. Tira a chave da ignição, e a música deixa de
tocar. Silêncio: o som da noite. Quando temos alguma sorte, talvez seja
acompanhado pelo som de uma orquestra de grilos… Mas naquele dia, não. A lua já
estava lá no alto quando tirou a chave de casa da mala e abriu a porta da
cozinha. Descalçou os ténis e dirigiu-se para o quarto. Enquanto vestia o
pijama e se refugiava debaixo dos lençóis, imaginou como seria viver em amor
pleno. Como se sentiria antes de ir dormir? Qual seria a última imagem a
passar-lhe pela mente antes mesmo de cair no sono? Mas enquanto estas questões
lhes trespassam o ente como fisgadas, as pálpebras fecham suavemente e, com
elas, os seus pensamentos. Mas na sua vez vieram os sonhos, assassinos em série
de corações despedaçados, que teimam em mostrar aquilo que desejamos afastar.
Mas também eles nos mostram aquilo que gostaríamos, um dia, de vir a viver.
Baseiam-se nos nossos desejos, dizem aqueles que sabem alguma coisa sobre o
assunto. Mas se continuarmos a viver de sonhos e desejos, quando é que temos
tempo e vontade para cair na realidade, e lutar? Dizem que os sonhadores são os
mais felizes. Eu discordo. Ela discorda. Os nossos corações discordam.
"que pensava ali levar um grande tesouro, quando levava um espécime de órgão propulsor tão comum como qualquer outro, tão sem valor como o de outra qualquer rapariga que ama sempre sem dó nem piedade, e depois se esquece de se amar a si própria."
ResponderEliminarQuem escreve assim, vive diferente, tem um coração diferente, ama de forma diferente. Nunca julgues que és semelhante.
E ama a vida. Quem a ama apaixona-se todos os dias e adormece sempre na felicidade do que é eterno... mas que seja o nada.
Depois, aí sim, corre atrás dos teus sonhos!
fantástico, fantástico. sempre que cá vens encantas-me um pouco mais!
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