quarta-feira, 29 de agosto de 2012

dar tempo ao tempo


Todas as noites ia-se repetindo. Ela bebia um chá enquanto via uma comédia romântica no sofá, de pernas à chinês, e com o aquecedor ligado mesmo do seu lado. Não chovia, mas ouvia-se o vento forte lá fora, o que fazia ainda mais frio. Quando o filme chegava ao fim, sentia-se preenchida e não pensava em mais nada a não ser no final feliz a que acabara de assistir; calçava os chinelos, pousava a chávena vazia em cima do balcão e encaminhava-se para o quarto. Tirava o robe, eriçando todos os pêlos dos braços e das pernas e saltava para dentro da cama muito rapidamente. Quando desligava a luz, o botão de iniciar do mundo real voltava a funcionar, e o clima aconchegante no qual tinha estado antes dissipava-se num abrir e fechar de olhos. Ao pousar a cabeça na almofada, as últimas semanas repetiam-se-lhe na mente, como aquela única música que metemos a reproduzir vezes e vezes sem conta - aquela que nos faz chorar, morrer por dentro... Mas que significa muito para nós, e é como relembrar algo que nos marcou. Por muito que nos faça sofrer, temos sempre tendência para a querer ouvir porque, numa certa altura, ela fez-nos feliz. E era isso o que acontecia com ela. Até adormecer, pensava na sua vida há cerca de um mês atrás: mal parava em casa, tinha sempre algo que fazer, algo para ver, algo para sentir. Tinha sempre uma pessoa que insistia em dar-lhe a mão enquanto andavam na rua, mesmo sabendo que ela não era muito de demonstrar sentimentos: um alguém que lhe ligava todas as noites para dizer que amava, um homem que lhe deu tudo o que ela sempre sonhou e que, de rompante, lhe escapou entre os dedos. Isto, por ela ser como era. Nunca lhe dizia que o amava, embora o amasse.
Por fim, quando conseguia mergulhar num sono profundo, os seus próprios sonhos teimavam em afundá-la. Todos tinham o mesmo tema: ele. E por mais que nos doa, por vezes, todo o nosso corpo, não havia pior dor do que aquela que ela sentia todas as vezes que fechava os olhos; doía-lhe a alma. Como descrever essa dor? É invisível a olho nu, mas das mais violentas que existem. É praticamente o mesmo que transformarem o nosso próprio ser num vidro e lhe darem um tiro, esperando que nós consigamos juntar todos os pequenos pedaços de vidro estilhaçado como se fosse um simples puzzle. É um sofrimento silencioso exteriormente mas, dentro do nosso corpo, todas as células berram de forma louca. Não há quem aguente, e não há outra forma de controlar este sentimento se não dar tempo. E agora perguntam-se: como é que alguém precisa de tempo para se curar, quando se sente alérgica ao passar do tempo? 
Tudo o que ela tinha naquele momento era um turbilhão de pensamentos que teimavam a deixar-lhe feridas no peito a todas as horas em que ela tentava fugir deles. Quando perdemos alguém que amamos por sermos quem somos, não há pior do que sentir o peso da culpa nos nossos ombros. E não há nada - nada - que possamos fazer para evitar isso. Ficamos deitados durante meses sob as nossas almofadas, esperando a tempestade passar e a maré descer para conseguirmos sair lá fora sem ter os olhos borratados e com um sorriso rasgado no rosto. Não há outro antídoto a não ser esperar. E morrer um pouco a cada segundo que passa.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

mendigo emocional


Quem a observa todos os dias a sair de casa, de auscultadores nos ouvidos, mala no ombro e sorriso rasgado nunca imagina o que se passa dentro da sua alma. Exteriormente, parece que quase nada lhe acontece: que não há maneira de a fazer cair no chão. Quase nada. Se nos aproximarmos como quem não quer a coisa, com pezinhos de lã, vemos que isso não é real. Os olhos estão inchados, o cabelo despenteado, o rímel borratado, e os suspiros são o que mais se ouve sair dos seus lábios. A música que lhe passa nos ouvidos não é de felicidade; muito pelo contrário - traduz o seu estado de espírito.
Por muito forte que pareça, não é nada mais que uma adolescente. Apesar de não estar só, sente-se só. Mesmo tendo motivos para sorrir com vontade, não tem paciência para o fazer a toda a hora. Só lhe apetece trancar-se no quarto, fechar as janelas, e dormir sempre. Não há mais nada que a cative a não ser refugiar-se em mundos que não são o seu... Espera a toda a hora algo que nunca vai chegar. O coração transborda de esperanças e dúvidas ao mesmo tempo.
O que é que uma pessoa deve fazer quando é deixada na corda bamba? Não há um fio condutor de pensamentos certo que possa seguir. Só lhe resta esperar. E não é esse um verbo que deve ser praticado continuadamente e que, por mais que nos custe, cabe a toda a gente? Umas vezes, o nosso pequeno órgão propulsor não aguenta, outras vezes fica mais fraco... Mas nunca, em circunstância alguma, sai ileso. É como se lhe fôssemos acrescentando cicatrizes aos poucos e poucos. E elas não o marcam só a ele: consequentemente, nós próprios mudamos. E ao longo dos anos, ela mudou, e muito. Mas houve apenas uma coisa que ela nunca conseguiu aprender realmente: a lutar contra os sentimentos, a defender-se dos seus ataques e a calcá-los para bem fundo. E quem não é dotado dessa capacidade, será um mendigo emocional para sempre... Até encontrar quem lhe dê não uma esmola, mas a mão.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Acho que o barco afundou. Outra vez. E fui eu quem, novamente, lançou a âncora e furou a proa com as próprias mãos.
(talvez não seja nada, ou talvez não seja realmente nada)