terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

lies



                


                 Não conseguia olhar-lhe nos olhos. Enquanto falava para mim, mais próximo do que o que me fazia sentir confortável, eu mirava o infinito. As suas palavras não me faziam sentido… Já não era a mesma pessoa que estava ali, à minha frente, a olhar para mim. O cabelo que eu conhecia despenteado estava agora mais curto, e virado para um único lado. A sua tez, que nunca fora demasiado branca nem muito morena, encontrava-se agora mais pálida do que o costume. Passava o peso de um pé para o outro em cada segundo, não conseguindo manter-se quieto durante muito tempo. A sua forma de falar já não era a mesma: parecia-me que estava a arrastar as palavras, e não falava da maneira intelectual que lhe conhecia. Cada sílaba um tiro, cada palavra uma facada.
                Apesar de estarmos num canto onde passava muita gente, não me apercebia de ninguém a olhar para nós. Ele falava baixo, num tom sussurrado, de forma a que só eu ouvisse… Mas não tinha qualquer vontade de lhe compreender o discurso. O que ele fizera, enganar-me a mim e ao meu coração, não se fazia a ninguém, e agora não me era possível olha-lo com os mesmos olhos. Começou por tocar-me nos ombros e, vagarosamente, passou as mãos para a minha face, de onde retirou uma madeixa do cabelo para trás da orelha. Sabia onde é que aquilo ia terminar; conhecia-o demasiado bem. Sempre que se aproximara de mim daquela maneira era para moldar-se em mim. E nós éramos peças de puzzle que encaixavam perfeitamente. Mas eu agora já não queria fazer parte dessa imagem, do «nós» que outrora existia. O toque dele já não me fazia encher o ventre com borboletas, e muito menos o seu hálito fresco na minha cara me transmitia toques elétricos para todo o corpo. Fitei-o, pela primeira vez depois do seu extenso monólogo, e foi como se voltasse atrás no tempo. Mesmo depois de tudo, os seus olhos continuavam iguais. Penetrantes, profundos, que contavam a sua história: no fundo da sua íris, que brilhava como uma estrela, ainda estava ali uma centelha da pessoa que amei. Mas mal fechei os olhos e voltei a abri-los, num trejeito de melhor assimilar a realidade, essa réstia do seu antigo eu desapareceu. Nesse momento, afastei-o de mim de forma brusca, como que demonstrando repúdio ao seu toque. Não aguentava mais tê-lo por perto ainda que, ao mesmo tempo, me apetecesse abraça-lo e beija-lo pelo que já foi. Era como se de um lado ele me puxasse contra o seu peito e, do outro, a minha consciência me puxasse para longe dele.
                Virei-lhe costas e, sem lhe dirigir uma única palavra, fui embora. Não para casa. Só queria sair dali, para longe das recordações. Ele era esperto… Tinha-me levado para o mesmo sítio onde tudo começou mas, desta vez, eu não iria ser a mesma tolinha que lhe disse que sim e que saiu dali a pessoa mais feliz do mundo. Não. Desta vez, em vez de levar o seu coração – achava eu – nas mãos, levava o meu próprio, com cicatrizes ainda por sarar, ao regaço. Naquele momento, e para condizer com o momento digno de filme, começou a chover. Com a pressa tinha deixado o guarda-chuva naquele recanto escuro e, por isso, apertei mais o cachecol contra mim e aproveitei o que o Céu tinha para me dar. Sentei-me num banco a uns bons metros longe do meu antigo amor e virei o rosto para cima. Se era para doer, que as lágrimas do infinito me lavassem as minhas. Se era para sentir tudo de uma só vez, que a fresquidão da escuridão me apaziguasse o ente. Sorri. Tinha uma certa tendência para me apaixonar pelas pessoas erradas, mas a culpa não seria unicamente minha. Desta vez, tinha confundido sentimentos, mas a criminosa não fui eu. Provavelmente terei um letreiro com luzes néon na testa a pedir que me cravem uma seta no lado esquerdo do peito, digam ser do cupido, a rodem sobre si própria e, de seguida, vão embora. Sem despedidas, sem desculpas, sem lamúrias.
                Quando me levantei não me importei que os jeans estivessem colados às pernas ou parecesse que me tinha atirado ao mar de roupa. Sinceramente, não queria saber de nada. Só queria aproveitar as emoções deprimentes que estava a viver naquele momento na minha própria solidão, da maneira que só eu sabia. Assim, virei caminho para casa.
                Como qualquer rapariga, sonhava que ele estivesse sentado na entrada à minha espera: rosto escondido entre as mãos, a lamentar-se pelos erros que cometera nos últimos tempos. Quando me visse, levantar-se-ia repentinamente, pararia no tempo por meros segundos, e correria para mim, levantar-me-ia no ar e beijar-me-ia na testa. Pediria mil desculpas e, só por isso, eu não queria saber de mais. Deixava-o entrar, esquecia fosse o que fosse, e só lhe pediria que me abraçasse enquanto dormia. Mas não. Isso só acontece na ficção.
                Quando cheguei a casa, abri a porta com um solavanco depois de rodar a chave e dirigi-me para o meu quarto. Vesti o meu pijama de flanela e saltei para o meio dos meus lençóis onde, poucos minutos depois, já sonhava com meu imaginário Don Juan que esperava por mim à porta. Infelizmente, sabia que isso nunca iria acontecer, porque tinha acabado por completo; tudo. Não tinha só trancado a porta de minha casa: a do meu órgão propulsor também.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Valentine's Day





          
            O despertador toca e logo abro os olhos. Através de pequenos buraquinhos da persiana os raios de sol dão-me os bons dias diretamente na face. Sorrio. Hoje é um bom dia, dedicado aos que amam e que são amados; aos que, de alguma forma, cruzaram o seu destino com o de outra pessoa e, desde aí, fizeram um nó entre os seus corações em que, tal como nos cordões dos ténis, por mais que se afastem as pontas, mais o nó fica preso. É o que chamam de – talvez – verdadeiro amor. 
Levanto-me da cama, abro o armário, e visto-me exatamente como planeara na noite anterior: peças com cores e padrões alusivos a este dia, para demonstrar o quanto o aprecio e como me faz feliz. Arranjo o cabelo numa enorme trança e saio do quarto. No corredor, encontro uma grande caixa com um laçarote gigante. Aproximo-me com relutância, o coração a palpitar, e desfaço o laço com uma única mão. Dentro do presente, um pequeno envelope. Dentro dele, uma carta, escrita com cuidado e com simples palavras que tudo dizem.
            És o oposto de mim. Sou pessoa de me alongar nas palavras para dizer pequenas coisas, com medo de não me expressar da melhor forma ou que não compreendas a profundidade com que digo o que digo. Já tu, escasso nos diálogos que na verdade são tão ricos, dizes tudo em meia dúzia de sílabas. E basta isso que te compreendo. Somos assim, completamo-nos. Junto a carta que tanto cheira a ti ao peito e inspiro afincadamente, como se arranjando forças e coragem para o que virá a seguir. Não é medo, é receio. Conheço-te demasiado bem, mas neste momento nada consigo prever. Só não quero chorar, isso não… Tu odeias que eu chore. Passo a não ser eu! Mas que posso fazer se me fazes tão bem, se me enches tanto o coração de forma a que ele rebente em lágrimas?
            A campainha toca e corro para a porta. Abro-a. Estás ali, sorriso de orelha a orelha, olhar terno e cheio de amor. Detenho-me nesse olhar como que a decorá-lo, para sempre o guardar no meu ente. Após isso, detenho-me nas tuas mãos que agora se estendem para mim: uma tulipa vermelha. A minha preferida.

          “Feliz dia de São Valentim”
            Abraço-te e ficamos ali, durante o tempo que foi preciso até me aperceber de que um abraço não pode durar eternamente e de que há uma vida lá fora, ainda que os teus braços me pareçam o melhor sítio para viver para sempre.
            Mas nada disto aconteceu. Como sempre.
             Acordo antes do despertador tocar e tudo o que mais quero é voltar a dormir. Neste breves segundos, não me chega sequer ao cérebro a informação de que dia é hoje. Estou simplesmente estafada, e é só disso que quero saber. Volto a fechar os olhos e adormeço, na esperança de que ainda demorem horas até ter que me levantar e encarar a vida lá fora. Vinte minutos depois o despertador toca e eu levanto-me muito devagar: atiro os cobertores para trás e, um pé de cada vez, saio da cama. É quando me ponho em pé que todos os pensamentos emergem na minha cabeça que agora lateja, fruto dos excessos da noite anterior. Mas não só por isso. Fico sempre assim quando o meu coração transborda. 
Abro o armário e visto exatamente as mesmas calças que ontem e a camisola mais simples que tenho. Apercebo-me de que o meu cabelo está extremamente horrível e apanho-o num rabo-de-cavalo. Saio do quarto e dirigo-me para a sala, onde ligo a máquina de café e tiro um para mim. A minha monotonia do café na mesa da sala – sabe-me sempre pela vida, como um rejuvenescimento. Saio de casa e, tal como nos últimos dias, está a chover. Abro o guarda-chuva e sigo a minha vida. Depois daí, mal me apercebi de que dia era. Não me apercebi de montras, de músicas, e casais foram raros os que vi. Talvez fosse isso: não via. Não queria ver, e por isso não via. Tentei colocar esse mundo à parte porque, sendo uma apaixonada eterna, este dia nem faz tanto sentido para mim. Pode ser cliché, mas não deixa de ser verdade: o dia dos apaixonados deve multiplicar-se pelos 365 do ano. Ama-se sempre. Puramente. Profundamente. Verdadeiramente.
            Mas porque é que continuo a sonhar?