Não
conseguia olhar-lhe nos olhos. Enquanto falava para mim, mais próximo do que o
que me fazia sentir confortável, eu mirava o infinito. As suas palavras não me
faziam sentido… Já não era a mesma pessoa que estava ali, à minha frente, a
olhar para mim. O cabelo que eu conhecia despenteado estava agora mais curto, e
virado para um único lado. A sua tez, que nunca fora demasiado branca nem muito
morena, encontrava-se agora mais pálida do que o costume. Passava o peso de um
pé para o outro em cada segundo, não conseguindo manter-se quieto durante muito
tempo. A sua forma de falar já não era a mesma: parecia-me que estava a
arrastar as palavras, e não falava da maneira intelectual que lhe conhecia. Cada
sílaba um tiro, cada palavra uma facada.
Apesar
de estarmos num canto onde passava muita gente, não me apercebia de ninguém a
olhar para nós. Ele falava baixo, num tom sussurrado, de forma a que só eu
ouvisse… Mas não tinha qualquer vontade de lhe compreender o discurso. O que
ele fizera, enganar-me a mim e ao meu coração, não se fazia a ninguém, e agora
não me era possível olha-lo com os mesmos olhos. Começou por tocar-me nos
ombros e, vagarosamente, passou as mãos para a minha face, de onde retirou uma
madeixa do cabelo para trás da orelha. Sabia onde é que aquilo ia terminar;
conhecia-o demasiado bem. Sempre que se aproximara de mim daquela maneira era
para moldar-se em mim. E nós éramos peças de puzzle que encaixavam
perfeitamente. Mas eu agora já não queria fazer parte dessa imagem, do «nós»
que outrora existia. O toque dele já não me fazia encher o ventre com
borboletas, e muito menos o seu hálito fresco na minha cara me transmitia
toques elétricos para todo o corpo. Fitei-o, pela primeira vez depois do seu extenso
monólogo, e foi como se voltasse atrás no tempo. Mesmo depois de tudo, os seus
olhos continuavam iguais. Penetrantes, profundos, que contavam a sua história: no
fundo da sua íris, que brilhava como uma estrela, ainda estava ali uma centelha
da pessoa que amei. Mas mal fechei os olhos e voltei a abri-los, num trejeito
de melhor assimilar a realidade, essa réstia do seu antigo eu desapareceu. Nesse
momento, afastei-o de mim de forma brusca, como que demonstrando repúdio ao seu
toque. Não aguentava mais tê-lo por perto ainda que, ao mesmo tempo, me
apetecesse abraça-lo e beija-lo pelo que já foi. Era como se de um lado ele me
puxasse contra o seu peito e, do outro, a minha consciência me puxasse para
longe dele.
Virei-lhe
costas e, sem lhe dirigir uma única palavra, fui embora. Não para casa. Só
queria sair dali, para longe das recordações. Ele era esperto… Tinha-me levado
para o mesmo sítio onde tudo começou mas, desta vez, eu não iria ser a mesma
tolinha que lhe disse que sim e que saiu dali a pessoa mais feliz do mundo.
Não. Desta vez, em vez de levar o seu coração – achava eu – nas mãos, levava o
meu próprio, com cicatrizes ainda por sarar, ao regaço. Naquele momento, e para
condizer com o momento digno de filme, começou a chover. Com a pressa tinha
deixado o guarda-chuva naquele recanto escuro e, por isso, apertei mais o
cachecol contra mim e aproveitei o que o Céu tinha para me dar. Sentei-me num
banco a uns bons metros longe do meu antigo amor e virei o rosto para cima. Se
era para doer, que as lágrimas do infinito me lavassem as minhas. Se era para
sentir tudo de uma só vez, que a fresquidão da escuridão me apaziguasse o ente.
Sorri. Tinha uma certa tendência para me apaixonar pelas pessoas erradas, mas a
culpa não seria unicamente minha. Desta vez, tinha confundido sentimentos, mas
a criminosa não fui eu. Provavelmente terei um letreiro com luzes néon na testa
a pedir que me cravem uma seta no lado esquerdo do peito, digam ser do cupido,
a rodem sobre si própria e, de seguida, vão embora. Sem despedidas, sem
desculpas, sem lamúrias.
Quando
me levantei não me importei que os jeans estivessem colados às pernas ou
parecesse que me tinha atirado ao mar de roupa. Sinceramente, não queria saber
de nada. Só queria aproveitar as emoções deprimentes que estava a viver naquele
momento na minha própria solidão, da maneira que só eu sabia. Assim, virei
caminho para casa.
Como
qualquer rapariga, sonhava que ele estivesse sentado na entrada à minha espera:
rosto escondido entre as mãos, a lamentar-se pelos erros que cometera nos
últimos tempos. Quando me visse, levantar-se-ia repentinamente, pararia no
tempo por meros segundos, e correria para mim, levantar-me-ia no ar e
beijar-me-ia na testa. Pediria mil desculpas e, só por isso, eu não queria
saber de mais. Deixava-o entrar, esquecia fosse o que fosse, e só lhe pediria
que me abraçasse enquanto dormia. Mas não. Isso só acontece na ficção.
Quando
cheguei a casa, abri a porta com um solavanco depois de rodar a chave e
dirigi-me para o meu quarto. Vesti o meu pijama de flanela e saltei para o meio
dos meus lençóis onde, poucos minutos depois, já sonhava com meu imaginário Don
Juan que esperava por mim à porta. Infelizmente, sabia que isso nunca iria
acontecer, porque tinha acabado por completo; tudo. Não tinha só trancado a
porta de minha casa: a do meu órgão propulsor também.
Fabiana.. Escreves tão bem! Adoro!
ResponderEliminarestá tão bem escrito, adoro!
ResponderEliminarTodo o sangue bombeado pelo teu coração parará, se esqueceres e o cerrares a sete chaves. Não o mereces. Perdermo-nos acontece tão frequentemente... quem te diz que amanhã não te encontras? Embora não pareça, nem tudo é um fim. Aparências iludem. Pode ser um início... Agarra-te a isso.
ResponderEliminarObrigada, "Anónimo". :)
ResponderEliminarque tenhas toda a razão.
ResponderEliminarmuito obrigada!
"Cada sílaba um tiro, cada palavra uma facada." às vezes os tiros que não matam são os que mais doem e as facadas que não abrem ferida abrem feridas bem maiores. que possas ter o teu Don Juan e a tua vida alegre e merecida. e que possa ler essa felicidade:)
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